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A oportunidade da catástrofe

“A peste do Governo é a irresolução [...] muitas ocasiões há tido o Brasil de se restaurar, muitas vezes tivemos o remédio quase entre as mãos, mas nunca o alcançamos, porque chegamos sempre um dia depois.” Padre Antônio Vieira, 1640


Na manhã de 1º de novembro de 1755, dia de Todos os Santos, Lisboa foi abalada pela maior catástrofe da sua história. Um terremoto com intensidade de 9 graus - segundo estimativas geológicas atuais - vitimou quase 100 mil pessoas, provocou o desabamento de mais de 33 mil edificações, e destruiu cerca de 90% das igrejas e conventos da cidade.


Um tsunami e incontáveis incêndios fizeram a tragédia perdurar por mais cinco dias. Com Lisboa completamente destruída e o país moralmente abalado, D José I, então Rei de Portugal, perguntou ao Marquês de Alorna o que fazer, após tamanha desgraça.


A resposta foi lacônica e dura: “enterrar os mortos, cuidar dos vivos e fechar os portos”. Para o Marquês, era fundamental naquele momento superar as perdas humanas - “sepultar os mortos” - e agir rapidamente para “cuidar dos vivos”, na busca de salvar o que restou, sem esquecer de “fechar os portos", ou seja, evitar novos problemas no cenário da catástrofe.


D. José repassou essa incumbência a D. Sebastião José de Carvalho e Melo, seu ministro de confiança.  O futuro Marquês de Pombal não se intimidou com a quantidade de mortos, nem com o caos em que se encontrava a população ou o próprio governo. De pronto, para evitar doenças, acelerou a remoção dos escombros e promoveu sepultamentos coletivos. Como medidas econômicas de urgência, instituiu a distribuição diária de alimentos aos sobreviventes, isentou de impostos os bens de primeira necessidade e congelou os preços de alguns gêneros, para evitar especulação.


Convenceu os comerciantes a doarem à coroa 4% do valor de todos os bens importados, e negociou com a Inglaterra, França e Espanha víveres e materiais para as obras. Para combater pilhagens criminosas, mandou vir das províncias efetivos de polícias e juízes, além de gente para combater os incêndios e homens de ofícios, que mais tarde deram seus nomes a muitas das ruas de Lisboa. Implacável como têm de ser os líderes nas situações extremas, Pombal ordenou julgamentos sumários, e que forcas fossem erguidas entre os escombros fumegantes, para que os corpos dos criminosos ficassem à vista, como exemplo.


Um mês depois, Pombal já trabalhava no inventário dos edifícios destruídos e no levantamento de registos de propriedade, proibindo construções definitivas, até que todos os escombros fossem retirados, e concentrando seus esforços nas reconstruções do centro da cidade, completamente arrasado pela tragédia.


Antes de 1755, Lisboa lembrava uma cidade medieval, com ruas estreitas e sem traçado organizado. Vendo na tragédia uma oportunidade, Pombal aproveitou para redesenhar a cidade, transformando-a em uma metrópole moderna e menos vulnerável a terremotos, ampliando e alinhando as ruas, além de adotar novas técnicas de engenharia e de incentivar a padronização dos materiais e das fachadas dos prédios.


Nas últimas décadas, as catástrofes climáticas têm sido recorrentes no Brasil. Segundo dados da Confederação Nacional de Municípios (CNM), entre 2013 e 2022, os prefeitos de 5.199 municípios brasileiros – ou seja, 93% do total de 5.570 – tiveram de fazer registros de emergência, ou de estado de calamidade pública, em consequência de desastres naturais como tempestades, tornados, inundações e enxurradas.


Nesses casos, as tragédias afetaram a vida de mais de 4,2 milhões de pessoas, que tiveram de abandonar as próprias casas. O estudo indica que mais de 2,2 milhões de moradias foram danificadas, em 4.334 municípios (78% do total), sendo que 107.413 foram totalmente destruídas, não incluídos aí os números dos desastres decorrentes de interferência humana, como das Barragens de Brumadinho e Mariana, e nem das recentes inundações em Pernambuco (2023), e no Rio Grande do Sul (2024). 


Perdas humanas são irreparáveis, e não podemos deixar de "cuidar dos vivos". Mas, a dura lição dos acontecimentos não tem sido aprendida: a gestão das nossas cidades está ultrapassada. Mesmo vivenciando crises sem precedentes, as cidades brasileiras continuam trabalhando sem coordenação efetiva dos serviços públicos, com a informação compartimentada, e com uma comunicação - das autoridades e da grande mídia -mais voltada para desacreditar pretensos concorrentes ou adversários políticos, do que para convergir esforços na solução dos problemas urbanos. 


A insensibilidade e a ganância têm predominado junto aos políticos e comerciantes da vez, que diariamente aparecem nas redes sociais se aproveitando dos prejuízos públicos para ganhos privados. A pandemia já havia mostrado ser prioritária a redefinição das estratégias de defesa civil das cidades, assim como o emprego das novas tecnologias, para agilizar os procedimentos de urgência, evitando-se prejuízos e retrabalhos, hoje habituais inclusive no inestimável esforço dos voluntários. Também, ser crucial uma comunicação fidedigna, capaz de privilegiar a cooperação entre o público e o privado, sobrepondo-se à polarização política oportunista, e minimizando a desinformação.


Agora mesmo, as cidades gaúchas já estão enfrentando alguns problemas de diminsões e natureza totalmente inéditos: operações de segurança pública intermitentes em ambientes incomuns; massiva expedição de documentos e patrimoniais extraviados; planejamentos urbanos voltados para minimização dos riscos de desastres futuros; (re)construção e legalização de antigos e novos imóveis; trato e destinação de milhares de animais resgatados; controle da lisura na distribuição de bilhões em donativos e recursos financeiros; difusão de uma informação “one voice”, (versão única) que concretize a transparência dos fatos, e minimize o efeito criminoso das fake news. 


Neste sentido, a tragédia do Rio Grande do Sul pode nos favorecer soluções demandadas há décadas, obrigando o abandono das improvisações dos orçamentos emergenciais, e a adoção do conceito de operação da cidade, com base em um “sistema integrado de resiliência urbana”. Partindo de um comitê de crise técnico, é possível montar um centro de governo permanente e efetivo, calcado em plataformas de consciência situacional, valendo-se de modernas tecnologias de captação e processamento de dados. Sistemas integrados de Comando e Controle (C2), utilizando ferramentas de Internet das Coisas (IoT) e Inteligência Artificial (IA), hoje comuns no mercado, podem promover a modernização da governança, a racionalização da reconstrução urbana e das providências de restauração da vida dos cidadãos.


Mais que atender às consequências de desastres naturais, a operação digital de uma cidade dificulta o mau uso dos recursos públicos, e faz a sua administração evoluir naturalmente com a tecnologia, trazendo qualidade de vida para as populações, e permitindo inclusive antecipação às possíveis crises.


Graças à visão de estadista e à determinação administrativa do Marquês de Pombal, Lisboa transformou-se na mais moderna capital da Europa do Século XVIII, apenas dez anos após o terremoto. Quase quatro séculos depois, numa situação similar de tragédia climática, o Brasil assiste seus executivos consumindo tempo e energia simplesmente difamando detratores políticos e alardeando ineficazes realizações imendiatas.


Estadistas conseguem transformar catástrofes em experiência e oportunidade, mas políticas paroquiais mesquinhas, descaso com o bem comum e incompetência para gerar futuro têm sido a nossa tônica. Hoje, o conselho do Marquês de Alorna ao Rei seria diferente: cuidar dos vivos, comunicar com eficiência e reestruturar a cidade. Está nos faltando aquela resolução prática e objetiva lusitana. Serviu para a reconstrução de Lisboa em 1755, certamente pode servir aos nossos governos, às nossas vidas.


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